Túlio enfrenta o improviso da quarta divisão paulista com a ajuda de um dublê e 7 000 reais no bolso
A rotina de Túlio rumo aos mil gols é cheia de lamentações. Não as dele, tranquilamente adequado ao estilo mambembe que o afasta de competições nacionais há quatro anos, mas de quem o acompanha e, de alguma forma, tenta tirar (ou não) uma lasca da ambição.
São dirigentes, técnicos, jogadores e a galera do faz-tudo — esta, uma classe que se multiplica a cada nova assinatura de contrato do artilheiro quarentão. Eles lamentam o contrato restrito aos gols que ele marca, os jogadores que têm que sacar, as chances de gol perdidas por um passe mal executado e se a atenção do atacante não é aquela que eles esperavam.
No Tanabi, o 28º e último clube antes de voltar ao Botafogo para marcar o milésimo gol, Túlio cumpre um contrato sui generis: mesmo obrigado a assinar por três meses, combinou com o presidente Irineu Alves Ferreira Filho — um exárbitro de vôlei que tentou por três vezes ser vereador em São José do Rio Preto pelo antigo PFL (atual DEM) — que fica até marcar oito gols. Faltavam três até 21 de maio.
O Tanabi participa da mais baixa divisão que o artilheiro dos Brasileirões de 1989, 1994 e1995 já participou. Embora a Federação Paulista conceda o status de “Segunda Divisão” ao torneio, o campeonato equivale à quarta divisão do estado. “Pensei: já disputei a primeira, a segunda e a terceira divisões. Quarta? Falta, né. Vamos lá”, afirma Túlio.
O contato com o artilheiro se deu pelo Twitter, logo após Túlio sair do CSE de Palmeira dos Índios-AL. “Era um sonho do presidente do clube”, diz o sargento da PM Alessandro Alves Reis, 35 anos, o Japão, faz-tudo do jogador na região. Foi ele quem negociou sua vinda. Túlio pediu 12000 reais por jogo, o clube ofereceu 7000 reais. O jogador aceitou, desde que o hotel, as passagens aéreas, o motorista e a alimentação fossem pagas pelo Tanabi. “Isso foi na segunda-feira. Na terça, depositei o dinheiro”, afirma Irineu.
Quinze patrocinadores bancam a permanência do artilheiro na cidade. Há contrapartidas, como a gravação de um comercial para uma concessionária de veículos para as emissoras de TV locais. Para capitalizar a contratação, a prefeitura deu um trato no estádio municipal e passou a vender carnês para seis jogos na cidade — Túlio não participa dos jogos como visitante e vai embora logo depois do fim da partida e de um almoço de confraternização.
O hotel que recebe Túlio em suas breves visitas fica em São José do Rio Preto, à beira da rodovia Washington Luís. Dorme em um apartamento de casal que ocupa sozinho — a mulher, Cristiane, e os cinco filhos (três deles do primeiro casamento) não o acompanham na viagem. “Cris Maravilha”, como se apresenta, vê do Rio de Janeiro essa rotina como empresária do jogador, depois de acompanhá- lo pelos clubes em que jogou até 2007. “Ele é um homem muito determinado. Me empolguei com essa obstinação”, diz. Nas partidas, recebe as informações sobre o desempenho do marido via mensagens de texto do presidente do clube.
Um dublê para Túlio
No Tanabi, Túlio encontrou um elenco sub-23, exigência da FPF para a quarta divisão. Apenas três jogadores acima dessa idade podem ser escalados. Túlio jamais treinou com eles. Toma o café no hotel e chega ao estádio faltando meia hora para o começo de cada partida para ouvir a preleção do técnico Alexandre Fusco, 45, o Xande, lateral-direito que jogou dez partidas pelo Flamengo no Brasileiro de 1988, substituindo um machucado Jorginho.
“No jogo passado, erramos na marcação”, diz Xande, enquanto apresenta em uma pequena lousa no centro do vestiário como quer o time: um 4-2-3-1, com Túlio isoladíssimo na frente. O nome do atacante só é mencionado uma vez: “Yuri, encosta no Túlio. Vamos primeiro garantir o resultado para depois entrar na história”. “Entrar na história” significa ajudar Túlio a marcar os gols.
Xande parece curtir menos a história. Está preocupado com a participação do clube na desgastante quarta divisão paulista. “Como é que um cara chega um dia, se apresenta e vai jogar? É o investimento do presidente, da cidade, e o Túlio não é mais aquele jogador que ele foi. É difícil para o treinador”, defende-se, num mau humor no melhor estilo Muricy Ramalho. De fato, Túlio é um abacaxi para se descascar. Xande tem o compromisso de escalá-lo em casa, mas diz que as participações devem ser definidas de acordo com a sua produtividade. A possibilidade de deixá-lo no banco mexeu com o estafe de Túlio e com os dirigentes depois de uma declaração do treinador a um portal da internet. “A gente tem o objetivo de se classificar, e vou ter que me virar com um cara que chega em cima da hora”, reclama. Como não pode contar com Túlio nos treinamentos, precisou inventar um “dublê”: o atacante Carioca, 22. “Sou centroavante, mas não tão paradão quanto ele”, diz o atacante, botafoguense e fã de Túlio.
Técnico, eu?
O adversário do dia é um clube amador da região, o Urânia. É de longe mais fraco que o rival anterior, o RCA, o outro time do presidente do Tanabi, cujas letras são as iniciais de seus três filhos, Rafael, Carolina e Artur. O “técnico” do Urânia é Raimundo Siqueira, o Motorzinho, pai do atacante corintiano Willian. Ele se esconde no vestiário visitante com a camisa 7 alvinegra autografada pelo filho. Um repórter da rádio local pergunta a este jornalista a escalação. Aponto para Motorzinho. “Só conheço dois caras. Só estou aqui para ajudar um amigo e participar da história do Túlio”, diz ele.
O amigo é Boca, 43, este sim o treinador do Urânia, improvisado no gol depois de o titular Renato, 23, quebrar a tíbia esquerda. Na partida, disputada sob sol forte às 10 da manhã, ele tem atuação destacada apesar de o time ser goleado por 4 x 0, três gols de Túlio. Ele salva um chute à queima-roupa, mas salta para o lado errado na cobrança de pênalti. “Ele me traiu ao olhar para um canto e bater em outro”, diz.
Em campo, Túlio faz o feijão com arroz. Movimenta-se pouco, sem sair do raio do ataque. Tira o pé de potenciais divididas, o que explica o baixo número de lesões. “Nos últimos anos, só sofri duas: uma muscular no adutor direito e outra no pé direito”, afirma o atacante, mostrando o dedão atingido por uma pisada do goleiro do RCA no amistoso anterior. Está em forma, com os mesmos 72 kg do Brasileirão de 1995.
O estilo irrequieto permanece. Antes de marcar o primeiro, perde uma chance clara, de frente para o gol. Ao encostar nos zagueiros, nas cobranças de escanteio, sussurra: “Deixa, deixa passar”. Nova chance, e Yuri, 21 anos, se aproxima do artilheiro para o passe. Erra. “Ah, Túlio, desculpa”, diz. Por coincidência, esta é a segunda vez que Yuri está no mesmo elenco que o jogador — a primeira havia sido no Barras, do Piauí. É ele quem marca o primeiro gol, depois de a bola resvalar em Túlio em um cruzamento. Aos 28min do primeiro tempo, o meia-atacante João Néris dá a assistência perfeita para o artilheiro. A bola bate na trave e entra. Nove minutos depois, aproveitando cobrança de escanteio, toca sozinho para o gol. Depois de mais um, de pênalti, surge um grito na arquibancada. “Tira o Túlio ou ele não joga domingo”, diz um torcedor, preocupado com o Tanabi na quarta divisão. No intervalo da partida, enquanto Xande atualiza as orientações, jogadores aproveitam para tirar fotos com o ídolo. A cena se repete ao fim da partida, quando há gente assistindo até mesmo a Túlio tomar banho no acanhado vestiário.
Já trocado, foi até uma sala improvisada na enfermaria do clube receber jornalistas. Lá, conhece Tulinho, um garoto de 13 anos cujo pai é botafoguense e que atua como lateral-esquerdo em um dos times da cidade. “Tá com quantos anos mesmo?”, pergunta ao menino. “É, acho que vai dar tempo de você cruzar umas bolas para mim ainda.”
Rumo aos 2000
Túlio não se aborrece com os questionamentos sobre a contabilidade dos gols. De fato, há uma disparidade entre o que está registrado e o que ele afirma ter feito (veja lista na pág. 66). Acha que já deve ter chegado aos mil, mas diz que gols seus pelas categorias de base se perderam em um incêndio na Federação Goiana. “Ficar atrás de Pelé e de Romário já está de bom tamanho. Se o Pelé foi questionado, o Romário e até o Friedenreich também, por que eu não seria?” Tanabi é só uma parada nessa busca, e ele não vende ilusões. “Não vou ser o salvador da pátria, não vou dar um título. Eles usam o Túlio para divulgar o clube, e eu uso o clube para chegar a uma marca histórica”, afirma o jogador.
O último a tirar a lasca da saga de Túlio será o Botafogo. Quando completar os oito gols previstos em contrato com o Tanabi, ficará à espera da oferta. Há um acordo verbal de que o herói do título brasileiro de 1995 vestirá a camisa 7 e fará os sete gols que faltarão à conta pelo Glorioso. Quando fizer o milésimo, encerrará imediatamente a carreira. Planos? “Quero ser comentarista”, afirma, sem descartar algumas partidas no showbol. “Quem sabe? Aí eu chego fácil aos 2000 gols.”
Fonte: Placar
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