Com idade de juniores, Adryan e Mattheus já aparecem no time principal do Flamengo. O desafio é passar pela experiência sem se queimar e retomar a tradição rubro-negra de formar craques
Amarelecido, pendurado em uma sala do departamento de futebol na Gávea, um quadro ilustrava a fornada dos anos 90. A imagem de Djalminha, Marcelinho Carioca, Júnior Baiano, Fabinho, Paulo Nunes, Nélio, Rogério, Gelson Baresi, Piá e Marquinhos, metaforicamente, representava a perpetuação de um dos maiores orgulhos rubro-negros: revelar talentos em profusão. A ponto de a frase “Craque o Flamengo faz em casa” ter virado um slogan desde o fim da década de 70. Após um hiato, longo, se consideradas as conquistas de Brasileiros pelo clube, o título da Copa São Paulo de Juniores de 2011, feito até então exclusivo daquela geração, soou como a redescoberta de um caminho em que presente e futuro são sinônimos.
Boa parte dos garotos que no ano passado ganharam a Copinha integra o atual elenco sob o comando de Dorival Júnior. Todos os dias, treinam no Ninho do Urubu o goleiro César, o zagueiro Frauches, os volantes Luiz Antônio e Muralha, os atacantes Negueba e Thomás, além de Adryan e Mattheus. Com presenças frequentes em todas as seleções de base desde a sub-13, estes dois últimos, meia-atacantes, mais meias que atacantes na definição de ambos, fazem os olhos
de dirigentes e torcedores brilharem. São as principais apostas num clube em que juventude e qualidade, não faz tanto tempo, eram virtudes que andavam de mãos dadas.
Historicamente, as maiores glórias do Flamengo são prova inequívoca de que, quando consegue formar times com o selo de legitimidade da casa, algo bom pode estar por vir. A base da equipe campeã do mundo de 1981, que, com variações entre 1978 e 1983, venceu quatro Estaduais e três Brasileiros, além da
Libertadores, tinha oito pratas da casa. Em 1987, sob a liderança de Zico, e em 1992, de Junior, a receita se repetiu, em menor escala, é verdade, mas com a política de revelar em vez de comprar pronto ainda vigorosa. Aldair, Leonardo, Ailton e Zinho que o digam. Jorginho e Bebeto vieram do América-RJ e Vitória, respectivamente, ainda nos juniores. A última grande conquista, o Brasileiro de 2009, foi a exceção. No time que entrou em campo na última rodada
precisando derrotar o Grêmio, no Maracanã, o Imperador Adriano era o único titular com DNA caseiro. O volante Aírton também poderia ser incluído, uma vez que chegou ao time de juniores vindo do Nova Iguaçu. E o prata da casa Ibson esteve presente em parte da campanha.
A realidade de Adryan e Mattheus é um pouco diferente. O Flamengo ainda procura se reencontrar depois de um primeiro semestre turbulento, no qual Vanderlei Luxemburgo e Joel Santana não resistiram às más atuações e aos problemas que sempre gravitaram em torno da figura de Ronaldinho Gaúcho, que saiu de forma traumática. Antes de pensarem em títulos, os meninos sabem que primeiramente têm de mostrar que subiram para ficar. Nascidos em 1994,
eles, em tese, estariam no primeiro dos três anos da categoria júnior (Adryan só faz 18 anos em outubro). “Os dois pegaram uma fase ruim do Flamengo, mas faz parte do aprendizado. A certeza é de que, pela postura e pela qualidade técnica, em breve vão se destacar”, aposta Carlos Noval, há dois anos e meio coordenador das categorias de base.
A chegada aos profissionais se deu de forma gradativa. No início do ano, com a equipe principal dedicadaa conquistar a vaga da pré-Libertadores, eles foram puxados por Vanderlei para alguns jogos pelo Estadual. Sob o comando do auxiliar técnico Júnior Lopes, Mattheus estreou contra o Olaria. Adryan entrou e fez gol contra o Bonsucesso. Desceram e retornaram com Joel, já na corda bamba, depois que o clube esbarrou na falta de recursos para se reforçar. “A gente
antecipou um pouco as coisas. Em vez de entrarem de férias após o Estadual de juniores, vieram para viver o ambiente. Estão em período de formação, adaptação e transição. Ninguém tem pressa para eles resolverem”, diz o diretor executivo Zinho.
Adryan é alguns meses mais novo que Mattheus, mas foi o primeiro a chamar atenção. Louro, de olhos claros, corpo de menino, obviamente ouviu algumas vezes que seria “o novo Zico”. É assim com dez entre dez meninos habilidosos, com suas características físicas, que surgem no Flamengo. Mas desde garoto é um dos destaques das seleções brasileiras de base. Aos 15 anos, já tinha contrato com uma gigante de material esportivo. Aos 16, assinou o primeiro contrato como profissional. No Mundial sub-17 do ano passado, no México, foi o destaque do time que parou nas semifinais diante do Uruguai. Os cinco gols que marcou lhe valeram a chuteira de bronze, atrás do alemão Samed Yesil e do marfinense Souleymane Coulibaly. “Mas os dois são atacantes, sou meia”, observa. Este ano, chamado por Ney Franco para a seleção sub-20 que disputou a Copa Internacional do Mediterrâneo, em Barcelona, foi eleito craque do torneio.
Adryan é um menino como outro qualquer de sua idade, que namora, vai ao cinema e adora jogar videogame com os amigos de infância e com o próprio Mattheus, companheiro de Flamengo desde os 8 anos. “Nunca fui aberto. Os amigos que tenho conheço desde pequeno. Procuro sempre estar com as pessoas certas”, diz. O fato de ser reservado, reconhece, até atrapalhou um pouco na hora de viver a primeira experiênciano time de cima. “Não consegui me entrosar muito com o pessoal, talvez pelo meu jeito, pela idade. Agora tá tudo ótimo, subi com o Mattheus, estou à vontade.”
Filho de um empresário da construção civil e de uma arquiteta, foi criado em Bento Ribeiro e Jacarepaguá, soltando pipa e jogando bola descalço no asfalto. Estudou em colégio alemão até ficar impossível conciliar o futebol com a exigência curricular. Fez o supletivo para completar o segundo grau. O tênis, esporte no qual se destacava nos torneios do condomínio, virou hobby. O fato de ser, digamos, um “bem-nascido” entre meninos que têm o futebol como a grande chance da vida jamais o atrapalhou. “Nunca sofri preconceito, pois sempre soube jogar. Podiam falar o que fosse, mas nunca joguei pelo dinheiro da minha família, mas pela qualidade. Eu me destacava, como iam abrir mão de mim? É assim que se faz parte de um grupo, não pela classe social.”
Mattheus virou figura pública bem antes de Adryan. Dois dias após ter nascido, ficou famoso ao ser “embalado” pelo pai, Bebeto, na comemoração do segundo gol brasileiro contraa Holanda, nas quartas de final da Copa de 1994, nos EUA. Parecia predestinado a seguir os passos do ex-craque rubro-negro. Para isso, teve de saber driblar as inevitáveis comparações: “Sempre teve, mas procuro superar. Ele fez a história dele, eu estou aqui para construir a minha”. Dos 10 aos 12 anos, jogou futsal até ser levado para o campo. Canhoto, com boa visão de jogo e 1,85 metro, foi vencendo etapas. Assim como Adryan, passou por todas as seleções de base. Brilhou no Estadual de juniores deste ano, antes de ser promovido. “No junior, o jogo é mais corrido. No profissional, é mais inteligente. Acho que estou bem adaptado”, diz.
Bebeto é um pai presente na carreira de Mattheus. Assiste a todos os jogos. Depois, tem a resenha. “A gente senta e conversa, ele me diz onde errei”, conta. A mãe, Denise, ex-jogadora de vôlei do Flamengo, também o acompanha de perto. É ela quem cuida, por exemplo, da vida financeira do menino, que também tem segundo grau completo e boa condição social. “Apesar disso, o mesmo sacrifício que meu pai fez eu também faço. Para mim também é difícil, até hoje. Houve alguns momentos de desânimo, mas nunca pensei em desistir”, lembra. Como ainda não tem carro, vai para os treinos de carona com Léo Moura, jogador mais antigo do elenco e um exemplo que procura seguir. “O Léo é um cara fora de série, dá moral, orienta”, conta.
Há dois anos, as divisões de base do Flamengo passaram por uma espécie de repaginação. A metodologia das diversas categorias foi unificada e as reuniões entre o diretor executivo Noval, o coordenador Toninho Barroso e os técnicos, intensificadas. O treinador do futsal passou a trabalhar com o pré-mirim no campo, uma maneira de facilitar a transição dos meninos da quadra para os gramados. É claro que nem sempre, ou melhor, quase nunca é possível evitar uma promoção prematura. Em 1986, Zinho disputou o Estadual — e foi campeão — ainda como amador. Voltou à base para disputar a Taça BH e, quando o lateral Adalberto quebrou a perna e Leonardo subiu, aí sim foi profissionalizado.
Os primeiros meses de 1987 foram complicados. Antônio Lopes havia barrado Edinho e Leandro, Zico se recuperava de contusão e o treinador acabou perdendo o emprego. A jogada de mestre do sucessor Carlinhos foi justamente completar um elenco recheado de ótimos jogadores com a turma com quem havia trabalhado na base. Zinho aproveitou a chance, e é o que procura passar para Adryan e Mattheus: “Peço para eles compreenderem o momento e aproveitarem. O lucro é viver a pressão sem se deixar pressionar, assimilar o elogio mas tomar cuidado com o tapinha nas costas e as colocações descabidas”, adverte.
Ao assumir o Flamengo, na 12ª rodada do Brasileiro, Dorival Júnior avisou que não quer responsabilidade excessiva sobre os garotos, o que não significa que não vão jogar. Lembrou que no Atlético-MG passara pela mesma necessidade. Lançou Bernard, Felipe Santos e Renan. “Garoto é só complemento, os mais vividos é que têm de chamar a responsabilidade.” Logo de cara, segurou Negueba, que, em baixa, estava prestes a ir para o futebol português. Thomás foi titular no segundo jogo, contra o Figueirense. Adryan entrou no segundo tempo e cobrou o escanteio que originou o primeiro gol da vitória por 2 x 0. Mattheus sequer viajou. “Aí fui nele e disse que, em vez de achar que perdeu a vez, tinha que treinar em dobro porque a oportunidade ia aparecer”, conta Zinho.
Para o ídolo Júnior, se a equipe se acertar logo, Adryan e Mattheus terão um caminho menos espinhoso, inclusive porque estão longe de serem considerados jogadores prontos: “Sou de 1954, subi com 20 anos, com o Dequinha, Júlio César [Uri Geller] e Adílio. Eu já estava formado. Hoje, essa molecada sobe com
16, 17, sequer amadureceram para a vida”, observa. Ainda assim, as duas promessas se consideram prontas para o que vem pela frente. “Eu estou aqui para dividir responsabilidade com os caras mais velhos, cada um tem a sua”, afirma Adryan. “Sonhei com esse momento desde menino, sempre sabendo que ia ter pressão. Trabalhar é a melhor maneira de esquecê-la”, diz Mattheus.
Fonte: Placar
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